Sobre “Joie de vivre” e quebrar a cristaleira
- Felipe Vigarinho
- 9 de set. de 2023
- 5 min de leitura
Atualizado: 29 de set. de 2023

Em todos esses anos de experiência clínica, como Neurologista, é natural para mim o convívio próximo com pessoas da melhor idade, consideradas por muitos no fim da vida. Em toda essa jornada, tive o privilégio de testemunhar o processo de envelhecimento, de adoecimento e até de morte centenas de vezes, e posso afirmar: fui absolutamente surpreendido em muitas dessas ocasiões. Por diversas vezes, conheci idosos de 80, 90 anos e até centenários, que em nenhum aspecto se fizeram velhos, apesar da idade - pessoas cheias de vida, com sonhos, namoros, e ambições audaciosas, como qualquer ser-humano no curso do viver. Acho que muito por essa vivência, pego-me costumeiramente refletindo sobre a passagem do tempo, e sobre o que fazemos com ele. E é sobre isso que venho falar com você.
É fato que começamos a envelhecer a partir do momento em que nascemos: desde o primeiro minuto, cada segundo deixado para trás fica no passado, no grande cronômetro da vida. Esse conceito, por si só, deveria despertar no ser-humano uma reflexão mais frequente sobre a passagem do tempo, no entanto, a longevidade, apesar de inerente ao processo de viver, leva-nos também a um sentimento de finitude – algo que não se deseja avaliar. E para evitar um confronto com a grande certeza da vida, que é morrer, muitos de nós ignoram com frequência reflexões sobre o caminho – um equívoco enorme, que nos coloca no piloto automático e nos impede de olhar pela janela durante o percurso.
Por esse motivo, é comum o ser-humano refletir sobre o seu tempo de vida somente em grandes marcos – como o nascimento de um filho, as datas redondas (quarenta, sessenta, oitenta anos etc), a descoberta de uma doença grave, ou quando se perde alguém querido. É pouco. Situações como essas nos permitem parar brevemente, e mergulhar em uma retrospectiva sobre passado, presente e futuro – algo que deveríamos fazer constantemente. É nesses momentos que nos damos conta de que aquilo de que somos feitos é fruto do tempo, e resultado de nossas escolhas, vivências e abdicações. E é essencial para um viver de qualidade a calibragem daquilo que se esperava, com o que se construiu e o que se espera atingir.
Digo isso, pois a história se constrói ao longo do caminho, e somos o acúmulo de vivências, curiosidades e anseios, que despertamos, cultivamos e concretizamos durante todo o tempo. E acredito fielmente, baseado em tudo o que já presenciei, que sem a consciência do trajeto, é bastante difícil viver com plenitude e realização. Por isso, o grande apelo desse artigo é que o leitor saia um pouco do piloto automático, pare e olhe para a sua vida (isso vale para qualquer idade mesmo): entenda a sua trajetória, viva o presente e busque sonhos a realizar. Para ajudar nesse processo de reflexão, 2 conceitos se fazem importantes no entendimento da construção, e funcionam como guias para o auto-conhecimento: o Legado e a Permanência.
O Legado é nosso passado, a matéria de que somos feitos. São os nossos próprios ombros que nos elevam à altura de montanhas, e permitem que vejamos o mundo de uma perspectiva privilegiada. O que vivenciamos é conhecimento acumulado, algo com o qual devemos aprender acima de tudo, para então superar as limitações, e arriscar novas abordagens – pois o movimento é indispensável ao percurso humano.
A Permanência significa vontade de viver. É desfrutar o presente com intensidade - uma dádiva que, ao mesmo tempo, traz responsabilidades, oportunidades e descobertas. É planejamento e realização concomitantes.
Nos últimos anos de vida, ao final de toda essa nossa jornada, temos naturalmente bastante legado – e torna-se armadilha tentadora olhar somente no retrovisor. Indivíduos que focam no Passado geram com frequência um sentimento de saudosismo vibrante, de querer reviver aquilo que já se passou, e de inquietação com o presente (que para eles, não se compara ao que já se viveu). Deixar de lado a permanência – muito por se considerar não ter mais idade para certas aspirações, às quais não se deve mais permitir, é o pior equívoco que uma pessoa idosa pode cometer. Nesse ponto, caro leitor, afirmo a você com toda a clareza possível: desistir do presente te levará à melancolia, à depressão e, em muitos casos, à Demência. Digo mais: os melhores idosos que conheci nunca se enxergaram velhos. Todos tinham em si uma essência de vida vibrante, algo que no francês chamamos “Joie de vivre” (ou, alegria de viver). Não importa quanto tempo lhes restava, o foco sempre foi viver intensamente, até o último minuto, aprendendo com o passado e construindo o Futuro. E essa é a grande sugestão que deixo a você. Pois alegria de viver e relações sociais intensas são importantes fatores para o envelhecimento saudável, e de proteção contra doenças como o Alzheimer - isso já é amplamente discutido, há décadas.
E não sou somente eu quem está dizendo. Por acaso, você já ouviu falar em Gilda (81 anos), Sonia (85 anos) e Helena (95 anos)? As chamadas “Avós da Razão”, dão show de lucidez em conversas sobre a vida, em seu Canal do Youtube de mesmo nome. Foi em seu livro “Avós da Razão – quebrando a cristaleira”, que me deparei com alguns dos termos e conceitos desse artigo, e que me levaram a tantas reflexões, quando trago às minhas vivências. Quebrar a cristaleira faz alusão à metáfora de sair, não do armário, mas da cristaleira, e de maneira intensa – como forma de se redescobrir após certa idade, e de jamais aposentar as chuteiras. Elas representam uma parcela de idosos que trabalham, saem com os amigos, participam da comunidade, aproveitam as suas famílias, namoram, têm desejos e desilusões como qualquer pessoa. E o mais importante: elas sonham...
Tenho em minha memória diversas lembranças de seres-humanos no fim da vida, que nunca se colocaram nessa posição. Certamente você também as tem. Essas foram as pessoas que mais me ensinaram a viver, desde a minha infância. Pois acredito fielmente que os indivíduos não nascem para morrer, e sim para viver! Ganhamos o direito de uso do corpo que é um verdadeiro milagre, um conjunto de milhões de interações moleculares constantes, que nos fazem ter raciocínio, disposição, força para viver os dias da melhor maneira possível. Não é justo desperdiçar isso tudo, antes do fim – seja quando for. O envelhecimento é certo, e comum a todos, e lidar com ele é uma educação que começa desde cedo – pois a infância é a base da longevidade. Olhar para o tempo da maneira certa é o segredo que tenho como aprendizado – visão que desejo passar a todos. Pois sempre há tempo para refletir, respirar fundo, e aproveitar. “Joie de vivre”!
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