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Joana D’Arc: bruxaria, divindade, loucura? Ou Epilepsia?


Imagem obtida por IA - https://designer.microsoft.com/

*Obra de ficção, ainda que baseada em fatos históricos.


França, 21 de fevereiro de 1431. Joana D’Arc iniciava o primeiro interrogatório junto aos seus inquisitores. À sua frente, o bispo francês, Pierre Cauchon, que há pouco mais de 1 mês conduzia todo o seu processo de julgamento, sob acusação de bruxaria e heresia. Cerca de um ano antes, a moça havia sido capturada durante um ataque das tropas francesas ao Campo de Margny, controlado por um grupo de franceses apoiadores da Inglaterra na Guerra dos Cem Anos. Vendida aos ingleses, ela vivia seus piores tempos - presa em uma cela na cidade de Ruão (região da Normandia – nordeste da França).


Ali, em clima de julgamento, e perante os acusadores, ela perguntava a si mesma como havia chegado a essa situação. Mas procurava não mostrar fraqueza. E sob devaneios, iniciava o relato de sua história...


Joana, uma jovem camponesa de 19 anos, havia nascido em Domrémy - uma pequena vila na região de Lorena, Leste da França. Era a filha mais nova de 5 irmãos, em uma família bastante religiosa, de agricultores e artesãos. Vez ou outra, ela gostava de fugir de sua vila para ir até igreja da cidade, onde orava fervorosamente, durante horas. Em um desses episódios, aos 13 anos, estava algo distraída mas absorta em suas orações, quando ouviu vozes ao longe, que pareciam chamá-la. As palavras ditas não eram claras, algo difícil de se entender por completo. Olhou ao seu redor, e estava sozinha, ajoelhada no banco da Igreja. Aquilo realmente a incomodou, pois era um som muito real - mas acabou sendo obrigada a deixar de lado, seguir seu dia e voltar para casa.


Dias depois, novamente ouviu uma voz, agora feminina. Estava sozinha em casa. Dessa vez, conseguiu entender perfeitamente as suas palavras: “você deve libertar a França do domínio inglês”. Em um primeiro momento, ela não entendeu o cunho daquela frase, ficou um tempo pensativa, e logo concluiu que deveria ser coisa de sua imaginação – afinal, o que uma camponesa poderia fazer perante uma situação histórica tão complexa? Voltou à sua rotina, mas sem esquecer por completo todo esse ocorrido.


Nos meses que se seguiram, e também nos próximos anos, a moça passou a receber mensagens de figuras que ela identificava como sendo do Arcanjo Miguel, de Santa Margarida e de Santa Catarina. Além de escutar suas vozes, por vezes ela testemunhava clarões, e via vultos. A mensagem era cada vez mais clara: ela precisava interferir diretamente na libertação da França. Inclusive, tinha instruções precisas sobre como fazer isso, abordando o ainda não coroado Rei francês Carlos VII.


Foi com esse pensamento que, aos 16 anos, ela iniciou a execução de um plano meticuloso para encontrar o monarca. Em uma cidade vizinha, conquistou o apoio do capitão de guarnição local, que aceitou interceder por ela, e a escoltar até Chinon – onde se encontraria com Carlos pela primeira vez. Já a essa altura, a fama da moça espalhava-se pela região, e muito já se falava na libertária francesa, enviada por Deus. Temendo ser pega por apoiadores ingleses, durante todo o trajeto entre as cidades (e sempre a partir de então), Joana vestia-se como homem, e passava despercebida entre as tropas.


Chegada a Chinon, a moça foi conduzida ao salão onde prometera-se o tal encontro. Os membros da comitiva responsável por Carlos VII estavam receosos por algum tipo de atentado e, por isso, haviam arquitetado um plano naquele dia: ocultaram o monarca em um salão cheio de nobres a receber a moça. Se fosse mesmo uma providência divina, deveria Joana encontrá-lo com facilidade, mesmo estando disfarçado e nunca ela o tendo visto antes. Dito e feito: ela o reconheceu imediatamente dentre os demais, caminhou até o rei, curvou-se e disse: “Senhor, vim conduzir os seus exércitos à vitória”. Esse momento deixou todos os espectadores realmente incrédulos, e confiantes no discurso de Joana.


Mesmo reticente, após breve período de provações e convencimento, Carlos decidiu confiar na moça, e entregou-lhe um exército, com o objetivo de libertar Orléans – cidade tomada pelos ingleses há 8 anos. Ela marchou para a cidade, junto de seus guerreiros. Descrições relatam uma jovem imponente, em um cavalo branco impecável, vestindo uma armadura de aço muito polido e segurando um grande estandarte com a cruz de Cristo, envolta pelos nomes de Jesus e Maria. A confiança tomou conta dos soldados, que acreditavam fielmente estarem cumprindo o destino divino. A isso, seguiu-se uma sucessão de vitórias francesas. O exército havia tomado cidades sequenciais do domínio inglês, e ganhava força – o que culminou com a vindoura coroação de Carlos VII como Rei da França, em Reims (1429). Mas para se recuperar o reino francês, ainda era necessário dominar Paris – algo nada fácil. Foi então que, em uma das batalhas seguintes, destinada a libertar a cidade de Compiègne do domínio francês, Joana D’arc acabou sendo capturada.

Aqui, caros leitores, voltamos ao primeiro parágrafo dessa história: o julgamento. Uma jovem camponesa, afirmando ter sido conduzida por Deus ao caminho trilhado, sob o argumento de conversas com santos nos últimos 6 anos. Coube ao bispo decidir, e o fim todos vocês conhecem: em 30 de maio de 1431, Joana D’Arc fora sentenciada à execução, e queimada viva, em evento público, na Praça do Velho Mercado, em Ruão. Dada a tamanha popularidade, suas cinzas foram jogadas no Rio Senna, para que não se tornassem objeto de veneração pelo povo.


Anos após, em 1456, o processo de julgamento teria sido revisto, e o Papa Calisto III teria absolvido Joana da acusação de heresia (ainda que tardiamente). Em 1909, a Igreja Católica deu início ao seu processo de beatificação, que culminou em sua canonização pelo Papa Bento XV, em 1920. A partir de então, passou a seu considerada Santa Joana D’Arc.


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Joana D’Arc é conhecida ainda nos dias de hoje como uma grande mártir, uma jovem obstinada que teria perdido a vida em nome de seu povo, e da fé. Há ainda quem a considere “louca”, mas cujos devaneios teriam sido combustível útil para direcionar as tropas francesas durante a Guerra dos Cem Anos. A sua história despertou real interesse em diversos estudiosos nas últimas décadas - cientistas dedicados a entender o real significado dos fenômenos por ela vivenciados. Afinal, seriam tais vozes alucinações – em algum grau de psicose?


Alguns trabalhos sustentam, sim, a tese de que Joana D’Arc teria sido esquizofrênica. Contudo – e aqui peço a licença para colocar uma visão pessoal – considero mais prováveis (e bem mais interessantes) teorias que sustentam a hipótese de ter ela apresentado Epilepsia. Explico: nos relatos disponíveis, os episódios nos quais ela escutava vozes (e esporadicamente via vultos e luzes) ocorriam de forma cíclica, por alguns minutos, às vezes até durante o sono. Entre tais “crises”, não se encontram relatos de que ela apresentava um pensamento desorganizado, delírios ou demais sintomas psicóticos em consistência.


Semiologicamente, esses ocorridos são compatíveis com um tipo de Epilepsia parcial de lobo temporal, na qual o indivíduo permanece consciente, mas apresenta alucinações auditivas durante segundos a minutos, podendo ocorrer em vigília ou até mesmo durante o sono (sendo a pessoa acordada por tal fenômeno). A essa comorbidade damos o nome de Epilepsia parcial idiopática com características auditivas (do inglês, sigla IPEAF).


Não sei... a hipótese epiléptica me parece bastante plausível. Mas, sinceramente? São apenas conjecturas – a arte de criar teorias factíveis, com base em figuras Históricas. Ainda assim, me pergunto se nós, racionais, estaríamos tão embriagados pelo pensamento científico, a ponto de não enxergar a manifestação Divina por meio dessa jovem camponesa. Teria ela feito jus à santidade, então? Bom... a conclusão aqui possível é que nada sabemos de verdade. Deixo aos leitores a liberdade de interpretar essa história da maneira como quiserem. E como é bom viver em tempos nos quais é possível crer nas suas verdades, sem correr o risco de queimar na fogueira, não é mesmo? (Será?)




Referências:

  • Allen C. A esquizofrenia de Joana D’Arc. Hist Med. 1975; 6: 4-9

  • Berents DA, Boer DEH, Warner M. Joan of Arc: Reality and Myth. .: Uitgeverij Verloren 1994; 8:412-18.

  • D’Orsi G, Tinuper P. The “voices” of Joan of Arc and epilepsy with auditory features. Epilepsy Behav. 2016; 61: 281.

  • Henker FO. Joana D'Arc e DSM III. Sul Med J. 1984; 77 : 1488-1490

  • Kamtchum-Tatuene J. Fogang Y. Comment on Joan of Arc: sanctity, witchcraft or epilepsy?. Epilepsy Behav. 2016; 58: 137-138

  • Nicastro N., Picard F. Joan of Arc: sanctity, witchcraft or epilepsy?. Epilepsy Behav. 2016; 57: 247-250


 
 
 

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