Bauman, autoconhecimento e as relações pós-modernas
- Felipe Vigarinho
- 12 de ago. de 2023
- 5 min de leitura
Atualizado: 29 de set. de 2023

O ser-humano é marcado, desde os seus primórdios, por um profundo desejo de autoconhecimento. Acredita-se que o homem, em sua versão evolucionista mais próxima, tenha destacado-se há 300 mil anos não somente pelo corpo ereto e pelo manuseio de objetos, mas essencialmente pela consciência de si mesmo, pela linguagem e racionalidade. Chamado homo sapiens, esse termo foi criado e categorizado pelo botânico Carl Linnaeus, no século XVIII, e cuja descrição em sua obra continha apenas 3 palavras: “conheça a ti mesmo”.
Junto com a necessidade de se compreender, profundas indagações existenciais sempre fizeram parte do pensamento humano: “quem sou eu”, “o que estou fazendo aqui”, “quem me colocou aqui”, e “de onde vim”. Tais perguntas formam as bases da Filosofia humana, e estruturam o desenvolvimento da nossa civilização: explorar o desconhecido sempre foi a válvula propulsora; desde o fogo, à expansão geográfica mundial do ser primitivo, ao além-mares, ao Universo... conhecimento e descoberta é o que nos move.
E é nesse ponto que quero chegar: a necessidade de conhecimento pelo homem é sua maior benção, mas também prisão. Dizia Jean Paul Sartre: "O homem é condenado a ser livre", frase que introduz o movimento filosófico e existencialista. Pois a liberdade de saber também aprisiona: conhecimento é infinito e quanto mais se descobre, mais se quer saber. E isso também se aplica ao “autoconhecimento”.
Nesse século, é mais frequente que nunca à sociedade (ao homem comum mesmo) a necessidade de se conhecer, e buscar pela felicidade - não somente sobreviver. Desde crianças, somos tomados por um desejo profundo de saber “quem somos”, “para que viemos ao Mundo”, “qual papel estamos destinados a executar”. Arrisco-me a dizer que a maior parte de nós passa a vida inteira em busca dessas respostas, e a incapacidade de lidar com elas é um importante fator de depressão, pois as certezas mudam ao longo dos anos e nem sempre conquistamos a vida que se almeja.
A modernidade, que ganhou corpo no século XIX, com a Ciência tomando espaço nas relações humanas, era sólida, palpável. A Racionalidade criou existência social: tenho RG, CPF, vou à escola, aprendo uma profissão, logo existo e sou uma pessoa importante na sociedade. As relações até então eram longas e duradoras, pautadas no que se é como pessoa. E esse cenário começou a mudar drasticamente nas últimas décadas.
Com o avanço da sociedade do consumo, o existir passou a conflitar com o ter. Quanto mais eu tenho, melhor eu sou, mais a sociedade me aceita e me venera. É um pensamento muito perigoso, porque o indivíduo passa a viver para satisfazer a imagem de si nos outros, uma corrida sem propósito enquanto a sua essência permanece vazia. Hoje, vemos muitas relações rápidas e friáveis (líquidas, segundo Bauman) – espalham-se; não há garantias de que permanecerão duradouras, pois são alimentadas pelo mesmo motivo existencial: preciso ser feliz, e se o outro não preencher meus critérios nessa corrida, troco (como fazemos com as mercadorias de consumo). Busca-se cada vez mais vínculos em estado líquido, que passam entre os dedos e podem conectar e desconectar de maneira rápida, como um produto consumido e superado - sustenta-se o desejo conflitante de estreitar laços, e ao mesmo tempo mantê-los frouxos e livres, sempre à prova.
Percebemos então, indivíduos constantemente atormentados pela consciência da qualidade de suas relações – de todo o tipo: amorosas, familiares, de amizade, com a empresa. Fica-se observando o tempo inteiro se aquilo está funcionando, se o exterior está nos ajudando no caminho certo para a felicidade. E quem muito vigia, acha – afinal, nada é bom o tempo todo, não é mesmo? Vemos em consultório muitos indivíduos angustiados com a vida, achando que deveriam estar melhor, e perdidos no caminho para se atingir o que fora idealizado. Essa é a consciência pós-moderna, que se instala sobretudo como um mal-estar, uma sensação de que não se atingiu o esperado.
E as redes sociais entram nesse cenário como verdadeiras hecatombes das relações. Elas se propõem a melhorar as imagens que as pessoas têm de si mesmas, por meio dos outros, para conseguirem conviver. Imagine ter o poder de criar a sua própria versão física, emocional, psíquica – de determinar (e manipular) a sua beleza, os locais que frequenta, o número de amigos que possui. É maravilhoso para o ego! Mas quando se volta para a realidade, a sua versão original deprime-se. E, pior, ao olhar a vida dos outros, por meio do celular, é angustiante perceber que estão todos, sem exceção, aparentemente muito bem, em seus caminhos perfeitos para a Felicidade.
Ademais, na realidade virtual, há uma intensa facilidade de cortar conexões - as relações são mais breves, intensas e banais. Valoriza-se a quantidade e não qualidade, assim como no consumo material. Quanto mais seguidores e likes, melhor. E isso cria um vício constante por validação externa: projeta-se no outro a sua razão de felicidade. O resultado de tudo isso é uma sociedade triste, e doente; viciada em telas e que vive para pintar o pano de fundo de sua vida digital, enquanto a realidade desce amarga. Óbvio que o mundo tecnológico e digitalizado nos trouxe enormes benefícios, mas o contexto psíquico e social também precisa ser analisado, estudado, para gerar conhecimento e meios para sair do abismo psicológico que ele pode criar.
Nesse sentido, resgato a obra de Epiteto, filósofo estóico, cujos pensamentos, acredito, tragam luz a essa nossa realidade. Ele se propôs a refletir sobre como um indivíduo pode viver uma vida feliz e plena e, para isso, trouxe algumas sugestões de conduta (que me parecem adequadas à atualidade, ainda que atemporais):
1. Separe o que pode controlar do que não pode. Atue sobre si mesmo, pois somente o que é interno ao indivíduo pode ser controlado (desejos, aspirações, pensamentos). Todo o mundo externo depende de diversos fatores que fogem à nossa capacidade e, tentar modificá-los só gera ansiedade e sentimento de impotência.
2. Ninguém pode te ferir. Enxergar um ato como insulto é sua escolha, pois é o seu julgamento do ato que gera essa sensação. Afaste-se, olhe de cima e respire fundo. Não se exponha, responda somente no momento certo, e com a atitude adequada. Nunca leve para o pessoal.
3. Escolha bem as pessoas próximas a você, e cultive relações sociais duradouras. Em qualquer relação social, 2 coisas podem acontecer – influenciar ou ser influenciado. Escolha conviver de perto com pessoas que despertam o melhor que tem dentro de vc.
4. Atue com regularidade em pensamentos e atitudes que o levarão à pessoa que você quer se tornar. Comportamentos e pensamentos repetidos diversas e diversas vezes, acabam tornando-se hábitos.
5. Não busque validação dos outros. Mérito pessoal não deve vir de uma pessoa externa. Mesmo quem o ama, não vai concordar em tudo com vc. Por isso, dê o seu melhor na vida e no trabalho, estejam os outros vendo ou não.
No fim, o mesmo desejo de autoconhecimento que paira sobre a humanidade, desde os seus primórdios, é o veneno, mas também a cura para a nossa sociedade. Se soubermos usá-lo para o bem, concentrando as nossas forças e validações em nós mesmos, e olhando de maneira crítica para o exterior. Dessa forma, a busca pela felicidade está em você, e em viver com serenidade, independente do mundo externo - algo que trará relento à sua consciência, no Mundo de relações líquidas, perfeitas, da era digital.
Sugestões de leitura complementar:
- Livro: Modernidade e ambivalência – Zygmunt Bauman.
- Livro: Modernidade líquida – Zygmunt Bauman.
- A arte de viver: O manual clássico da virtude, felicidade e sabedoria (Epicteto) - Sheron Lebell.
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